Sabemos histórias
Os dois pisos do crédito
por JOÃO CÉSAR DAS NEVES
Toda a gente sabe que as empresas financeiras são gananciosas, cruéis, cegas, estúpidas. Vimo-lo em filmes, lemos notícias, sabemos histórias, conversámos com amigos. O mal é o mundo e Portugal estarem nas mãos desses bandidos pedantes e tacanhos, não é?
De facto, a realidade é bastante mais complexa. No nosso sofá, aquilo que julgamos saber sobre os mercados internacionais não passa em geral de preconceitos simplistas. Mas há aspectos verdadeiros nessas acusações. Os analistas cometeram erros graves de cálculo no passado, provocando a crise, e, pior e mais relevante, cometem agora os erros opostos, incluindo na dívida nacional.
Hoje não restam dúvidas de que a banca e investidores mundiais foram muito imprudentes ao emprestar ao Governo português tanto durante tanto tempo. Andámos anos a pagar taxas de juro quase iguais às da Alemanha, o que agora se vê ser a enorme tolice que sempre foi. A culpa disso é exclusivamente dos credores, que hoje se mostram tão alarmados com as consequências da sua asneira.
Claro que esse mesmo endividamento também mostra a nossa tolice. Nós, agora tão furiosos com a maldade e loucura dos financeiros, deixámo-nos afundar recorrendo a eles tão ansiosamente. Nos 15 anos em que se acumulou o peso que nos esmaga não se ouviram as vozes dos que agora criticam a perversidade dos tais bandidos pedantes e tacanhos. Quando precisávamos deles, os bancos eram excelentes.
Actualmente esses mesmos bancos, tanto tempo embebedados de euforia, vivem um pânico igualmente injustificado. Será Portugal, por mal que esteja, mesmo um dos dez países mais arriscados do mundo!? Não se encontra, por esse planeta além, mais que um punhado de pagadores tão faltosos? Afinal, somos membros do euro e da União, com alto nível de desenvolvimento e integração financeira, que, apesar das evidentes dificuldades, não merece tanto nervosismo. Confundir-nos com a Venezuela é tão estúpido como antes era igualar-nos a alemães.
A causa deste disparate é curiosa. Podemos dizer que nos bancos internacionais existem dois andares de crédito. No primeiro piso, onde se lida com mercados emergentes da África, Ásia e América Latina, costuma haver falências e renegociações de dívida. Aí ouvem-se zangas, arrastar de mobília e partir de loiça. Mas no andar de cima, da Europa e América do Norte, a música ambiente é suave e bebe-se chá em amena cavaqueira. Só que nestes últimos anos começou a surgir aí alguma turbulência. Grécia, Portugal, Irlanda têm dificuldades de pagamento. Então os analistas mimados do segundo piso, não acostumados a algo que os colegas conhecem bem, exageram o risco e reagem com um susto e fúria que se deve mais à sua incompetência que à realidade.
Erros em finanças significam sempre oportunidades de ga- nho. Se durante muito tempo a dívida portuguesa andou sobreva-lorizada, agora está claramente abaixo do seu real ní- vel. Quando os bancos são tontos, quem mantiver a cabeça fria pode ficar rico transaccionando esses títulos.
Tudo isto, se acusa claramente os financeiros, não tira um grama de culpa ao Governo português. Nos quase dois anos após 21 de Janeiro de 2009, data da descida inicial do rating que lançou a crise da dívida soberana, os ministros têm representado uma comédia de erros digna da pior pantomima. Face aos mercados, o Governo, e José Sócrates em particular, está como o marido apanhado pela mulher em adultério. É verdade que, como vimos, a esposa tem culpas na situação, mas o faltoso é o devedor.
Se não consegue pedir desculpa, ao menos mostre-se compungido e envergonhado, jurando fazer tudo para compensar o erro. Recuperar a credibilidade, coisa sempre muito difícil, exige assumir responsabilidades, manifestar empenho, revelar eficácia em compensar os danos. Pelo contrário, a atitude optimista, desafiante e justificadora do senhor primeiro-ministro ainda nos enterra mais. Assegurar que a coisa não é grave, com aquela pose de insolência paternalista a que deve tantas vitórias internas, é desastroso na banca internacional.
Tirado daqui.
por JOÃO CÉSAR DAS NEVES
Toda a gente sabe que as empresas financeiras são gananciosas, cruéis, cegas, estúpidas. Vimo-lo em filmes, lemos notícias, sabemos histórias, conversámos com amigos. O mal é o mundo e Portugal estarem nas mãos desses bandidos pedantes e tacanhos, não é?
De facto, a realidade é bastante mais complexa. No nosso sofá, aquilo que julgamos saber sobre os mercados internacionais não passa em geral de preconceitos simplistas. Mas há aspectos verdadeiros nessas acusações. Os analistas cometeram erros graves de cálculo no passado, provocando a crise, e, pior e mais relevante, cometem agora os erros opostos, incluindo na dívida nacional.
Hoje não restam dúvidas de que a banca e investidores mundiais foram muito imprudentes ao emprestar ao Governo português tanto durante tanto tempo. Andámos anos a pagar taxas de juro quase iguais às da Alemanha, o que agora se vê ser a enorme tolice que sempre foi. A culpa disso é exclusivamente dos credores, que hoje se mostram tão alarmados com as consequências da sua asneira.
Claro que esse mesmo endividamento também mostra a nossa tolice. Nós, agora tão furiosos com a maldade e loucura dos financeiros, deixámo-nos afundar recorrendo a eles tão ansiosamente. Nos 15 anos em que se acumulou o peso que nos esmaga não se ouviram as vozes dos que agora criticam a perversidade dos tais bandidos pedantes e tacanhos. Quando precisávamos deles, os bancos eram excelentes.
Actualmente esses mesmos bancos, tanto tempo embebedados de euforia, vivem um pânico igualmente injustificado. Será Portugal, por mal que esteja, mesmo um dos dez países mais arriscados do mundo!? Não se encontra, por esse planeta além, mais que um punhado de pagadores tão faltosos? Afinal, somos membros do euro e da União, com alto nível de desenvolvimento e integração financeira, que, apesar das evidentes dificuldades, não merece tanto nervosismo. Confundir-nos com a Venezuela é tão estúpido como antes era igualar-nos a alemães.
A causa deste disparate é curiosa. Podemos dizer que nos bancos internacionais existem dois andares de crédito. No primeiro piso, onde se lida com mercados emergentes da África, Ásia e América Latina, costuma haver falências e renegociações de dívida. Aí ouvem-se zangas, arrastar de mobília e partir de loiça. Mas no andar de cima, da Europa e América do Norte, a música ambiente é suave e bebe-se chá em amena cavaqueira. Só que nestes últimos anos começou a surgir aí alguma turbulência. Grécia, Portugal, Irlanda têm dificuldades de pagamento. Então os analistas mimados do segundo piso, não acostumados a algo que os colegas conhecem bem, exageram o risco e reagem com um susto e fúria que se deve mais à sua incompetência que à realidade.
Erros em finanças significam sempre oportunidades de ga- nho. Se durante muito tempo a dívida portuguesa andou sobreva-lorizada, agora está claramente abaixo do seu real ní- vel. Quando os bancos são tontos, quem mantiver a cabeça fria pode ficar rico transaccionando esses títulos.
Tudo isto, se acusa claramente os financeiros, não tira um grama de culpa ao Governo português. Nos quase dois anos após 21 de Janeiro de 2009, data da descida inicial do rating que lançou a crise da dívida soberana, os ministros têm representado uma comédia de erros digna da pior pantomima. Face aos mercados, o Governo, e José Sócrates em particular, está como o marido apanhado pela mulher em adultério. É verdade que, como vimos, a esposa tem culpas na situação, mas o faltoso é o devedor.
Se não consegue pedir desculpa, ao menos mostre-se compungido e envergonhado, jurando fazer tudo para compensar o erro. Recuperar a credibilidade, coisa sempre muito difícil, exige assumir responsabilidades, manifestar empenho, revelar eficácia em compensar os danos. Pelo contrário, a atitude optimista, desafiante e justificadora do senhor primeiro-ministro ainda nos enterra mais. Assegurar que a coisa não é grave, com aquela pose de insolência paternalista a que deve tantas vitórias internas, é desastroso na banca internacional.
Tirado daqui.
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