palavras de ursa

Friday, February 02, 2007

Votar sim

VOTAR SIM*

Na sala de espera da clínica uma menina de quinze anos entretém-se a olhar para os ténis de marca enquanto a mãe relê a folha onde deve expressar o seu consentimento. Tem que assinar; parece que é o melhor para todos, ela é ainda tão pequenina, que chatice, que fizemos mal, e olha em redor, como comparando-se, buscando a equivalência na dor. Em frente delas está sentado um casal de trinta e tantos, cansado, triste e com vontade de que a vida fuja dos hospitais, das análises, dos diagnósticos injustos. E também vê uma senhora sozinha, com pasta, fato e ar de muitas reuniões à semana e uma cigana velha que arrasta uma barriga adolescente. E uma enfermeira que entra e sai enumerando nomes que trazem fetos. Na sala de espera da clínica especializada em abortos do centro de Madrid não há uma única alma que esteja confortável, apesar da cor neutra das paredes e das revistas do coração que sobram porque ninguém está lá para saber da vida dos outros. Naquela sala não vê uma mulher feliz, sossegada, nem nenhuma que pareça uma assassina em série que mereça ser julgada por um referendo popular. Só mulheres que precisam abortar.
Quando em 1998 Portugal preferiu ir para a praia, ficar em casa, dar banho ao cão ou visitar a sogra deixou bem claro que se há um lugar onde ninguém se quer meter é no útero de uma mulher. Votar em nome dele, dar voz a um destino que só compete a quem o traz de fábrica não cabe na cabeça de pessoa crescida, a não ser, claro, na dos senhores que habitam na nossa Assembleia da República. Eles, sempre tão comprometidos para a capa do jornal com o «Portugal real», foram incapazes na altura de deixar de penalizar mulheres que estão dispostas a arriscar a reputação, a vida ou o cadastro, num acto que não distingue classes sociais, consciência religiosa ou estabilidade familiar. E quando volta a submeter uma opção tão pessoal aos foruns de internet, aos debates em máxima audiência – enfim, à voz do povo – obriga os portugueses a questionarem-se em público em nome de um bem comum. Um bem comum a que chamaram Vida, com maiúsculas e questões éticas e que atola automaticamente o debate, preso por todos os valores genéticos, congénitos e culturais. Porque ninguém quer ser o responsável pela morte de um futuro Luís Figo, então o melhor é não votar. «Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas dez primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?». Ou então, é preferível não concordar. Umas quantas mulheres presas bem valem uma Vida, com maiúsculas, sagrada, expectante, superior a qualquer valor, a qualquer necessidade económica, a qualquer desespero. E assim, impondo o bem comum faz-se saber a todos os interessados, inclusive à comunidade médica, que votar a favor da despenalização da interrupção da gravidez equivale a matar. E matar é um crime.
Eis aqui o erro primeiro desta discussão: o valor a ter em conta não deve ser a Vida, mas sim a Mulher, também ela com maiúsculas, sagrada e anterior e a quem o Estado deveria proteger. E eis aqui, também, onde o discurso óbvio dos militantes do "não" impressiona mais, porque parece ignorar que a Mulher é parte interessada em todo este assunto. Fala-se de nós, as únicas que engravidamos, como simples portadoras, tal qual uma mochila sem vontade ou necessidade. Muitas abortam porque não sabem o que fazem e outras por maldade, inconsciência, fraqueza ou estupidez. Ou tudo junto. E o que a voz do "não" nos diz é que devemos ser castigadas e dissuadidas do erro, desse terrível passo que matará, de um modo cruel e doloroso, um ser indefeso. Esse ser, dizem, é que precisa de ajuda, nunca as mulheres. Abortar está mal. Não importa porque se faça. Claro que há desculpas, como o perigo da mãe, doenças congénitas e violações, mas como está posta actualmente a questão do aborto em Portugal, até essas excepções são más, um crime que se perdoa porque está socialmente estabelecido. Mas quando toca à realidade todos têm medo de cometer este crime hediondo, começando pelos médicos que são os primeiros que não querem ser os culpados. Uma vez mais, a Mulher é a última a ser tida em conta.
Se a Mulher fosse o factor mais importante, então o aborto não entraria na equação da moralidade e o Estado, que é quem tem a responsabilidade final pelo bem-estar dos cidadãos, preocupar-se-ia em investigar porque razão milhares de mulheres todos os anos decidem pôr fim à sua gravidez. Se o Estado não fosse cobarde saberia que nada impede que os abortos se realizem, numa cave, em Mérida ou com um ramo de salsa. E se o Estado não olhasse para as mulheres neste assunto como cidadãs de segunda perceberia que quem tem a voz última no tema não são deputados, taxistas, párocos, intelectuais ou politóligos. Somos nós, as mulheres. E naquela clínica de Madrid, onde tudo era legal e desinfectado, as únicas que se podiam levantar e ir para casa eram as que iam abortar. E o Estado não pode continuar a esquecer que só nós decidimos.

* publicado na edição de Dezembro da Revista Atlântico.

Tirado daqui.

3 Comments:

  • At 3:37 pm, February 02, 2007, Anonymous Anonymous said…

    hola margarida, hoy he tardado un poquito en escribirte, porque he estado leyendote el articulo que has puesto, sobre las mujeres y el aborto. Me lo lei todo, todo, todo.
    Aqui en España tambien pasa lo mismo.
    Veo que ya tienes 19 (años no, votos) pues hoy vas a llegar a los 21, no crees que lo tenemos que celebrar?
    esta noche voy a mirar una pelicula portuguesa del senhor Oliveira se llama un "Un film falado" del año 2003. Tu ya sabes que es el dirctor de cine de mas edad de portugal y que todavia trabaja.
    Besos, muaaa, te espero mañana

     
  • At 12:03 am, February 04, 2007, Anonymous Anonymous said…

    margarida, un beso, es de noche y no puedo gritar y no te quiero despertar. Hasta mañana.
    Ya te he dado mi voto.au revoir.
    Ah, tengo un coche nuevo, quieres venir conmigo, y me enseñas Lisboa?

     
  • At 6:18 pm, February 04, 2007, Anonymous Anonymous said…

    Un pensiero e un ricordo
    un abbraccio Massimo

     

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